Moda, inclusão social e gênero: a contribuição socioambiental do Projeto “Oficina Comunitária de Upcycling” no bairro Passaré-Fortaleza-Ceará-Brasil - Volumen 12 Número 4 - Página —-
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ISSN 0719-4706 | |
Moda, inclusão social e gênero: a contribuição socioambiental do Projeto “Oficina Comunitária de Upcycling” no bairro Passaré-Fortaleza-Ceará-Brasil
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Fashion, social inclusion and gender: the socio-environmental contribution of the “Community Upcycling Workshop” Project in the Passaré neighborhood, Fortaleza, Ceará, Brazil
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Moda, inclusión social y género: la contribución socioambiental del Proyecto “Taller Comunitario de Upcycling” en el barrio de Passaré, Fortaleza, Ceará, Brasil
Isi de Oliveira Barreira
Universidade Federal do Ceará, Brasil
https://orcid.org/0009-0008-6202-4741
Helena Stela Sampaio
Universidade Federal do Ceará, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-3675-2696
Fecha de Recepción: 25 de Agosto de 2025
Fecha de Aceptación: 20 de noviembre de 2025
Fecha de Publicación: 15 de diciembre de 2025
Financiamiento:
Se financió con fondos de la beca otorgada por CAPES-Brasil.
Conflictos de interés:
Los autores declaran no presentar conflicto de interés.
Correspondencia:
Nombres y Apellidos: Isi de Oliveira Barreira
Correo electrónico: isideoliveira3012@gmail.com
Dirección postal: Av. da Universidade, 2853 - Benfica, Fortaleza - CE, 60020-181, Brasil
Licencia Creative Commons Atributtion Nom-Comercial 4.0 Unported (CC BY-NC 4.0) Licencia Internacional
Resumo: O artigo é parte da pesquisa, em andamento, no Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA) da Universidade Federal do Ceará – UFC, Brasil. O estudo analisa os sentidos materiais e simbólicos atribuídos pelos atores sociais na “Oficina Comunitária Sustentável de Upcycling” desenvolvida no bairro Passaré, em Fortaleza/CE, Brasil, como ação socioambiental responsável destinada às mulheres em condições de vulnerabilidade social. Assim, a pesquisa, utilizando a metodologia de análise de discurso, busca avaliar o real impacto ambiental e social para as mulheres alcançadas pelas oficinas. A pesquisa constatou que os entes federativos brasileiros (Municípios e Estados) têm grande dificuldades na implementação de políticas públicas específicas para o descarte têxtil ou mesmo para uma moda sustentável. Ao final das oficinas, a compreensão das mulheres sobre a técnica do upcycling foi transformadora, redundando na possibilidade de geração de renda.
Palavras-chave: Sustentabilidade; gênero; vulnerabilidade social; upcycling.
Abstract: This article is part of ongoing research for the Master's in Development and Environment (PRODEMA) program at the Federal University of Ceará – UFC, Brazil. The study analyzes the material and symbolic meanings attributed by social actors to the "Sustainable Community Upcycling Workshop," developed in the Passaré neighborhood of Fortaleza, Ceará, Brazil, as a responsible socio-environmental initiative for women in vulnerable situations. Using discourse analysis, the research seeks to assess the real environmental and social impact on the women reached by the workshops. The study found that Brazilian federative entities (municipalities and states) have significant difficulties implementing specific public policies for textile disposal or even sustainable fashion. At the end of the workshops, the women's understanding of the upcycling technique was transformative, resulting in the possibility of income generation.
Keywords: Sustainability; gender; social vulnerability; upcycling.
Resumen: Este artículo forma parte de la investigación en curso del programa de Maestría en Desarrollo y Medio Ambiente (PRODEMA) de la Universidad Federal de Ceará – UFC, Brasil. El estudio analiza los significados materiales y simbólicos atribuidos por los actores sociales al "Taller de Reciclaje Comunitario Sostenible", desarrollado en el barrio de Passaré en Fortaleza, Ceará, Brasil, como una iniciativa socioambiental responsable para mujeres en situación de vulnerabilidad. Mediante el análisis del discurso, la investigación busca evaluar el impacto ambiental y social real en las mujeres atendidas por los talleres. El estudio reveló que las entidades federativas brasileñas (municipios y estados) tienen dificultades significativas para implementar políticas públicas específicas para la gestión de residuos textiles o incluso para la moda sostenible. Al finalizar los talleres, la comprensión de las mujeres sobre la técnica de reciclaje fue transformadora, lo que les permitió generar ingresos.
Palabras claves: Sostenibilidad; género; vulnerabilidad social; upcycling.
Introdução
A ação do homem, em especial no período industrial, tem provocado mudanças globais, sem precedentes, que ocasionam efeitos devastadores, como enchentes, desertificação, extinção de espécies, degelo polar, aquecimento dos oceanos etc. Em meio a estes profundos impactos ambientais, tornam-se urgentes ações mitigadoras para o presente e compromissos para o futuro[1].
Nesse contexto global em que vivemos, com acentuada movimentação de informações e pessoas, a indústria têxtil tem sido uma das grandes poluidoras e gerado grandes preocupações, principalmente quando se pensa no descarte das peças em desuso[2]. Estimam-se que somente no Brasil, são descartadas, por ano, 170 mil toneladas de resíduos têxteis[3].
A indústria da moda, tem um grande aliado simbólico na lógica do capital, pois ao produzir roupas colabora na visibilidade do vestuário como elemento de distinção cultural e social[4]. Uma vestimenta pode expressar funções, crenças, valores de um indivíduo no interior de uma comunidade e reforçando uma identidade. Assim, a indústria da moda se apropria desses aspectos culturais e identitários para reforçar um ciclo de produção→uso→descarte.
A temática escolhida é parte integrante da pesquisa, em andamento, no Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA) da Universidade Federal do Ceará – UFC, Brasil. O estudo rebusca os sentidos materiais e simbólicos atribuídos pelos atores sociais (monitora e mulheres capacitadas) na “Oficina Comunitária Sustentável de Upcycling” desenvolvida no bairro Passaré, em Fortaleza/CE, como ação socioambiental responsável para mulheres em condições de vulnerabilidade social.
A proposta de capacitação foi selecionada pelo 13º Edital Ceará das Artes, na categoria moda, certame promovido pela Secretaria da Cultura do Ceará, em 2024, com recursos parciais oriundos da Lei Complementar Federal nº 195/2022, também conhecida como Lei Paulo Gustavo[5].
O projeto selecionado propôs trabalhar com a técnica do upcycling, apresentada às mulheres como um mecanismo sustentável, que evita o descarte de objetos que ainda podem ser aproveitados[6]. Portanto, a pesquisa, ampliadamente, busca explicitar o conceito de sustentabilidade no mundo industrial contemporâneo e, de modo mais circunscrito, avaliar o real impacto ambiental, social e econômico para as mulheres alcançadas pelas oficinas.
Portanto, o objetivo geral é analisar os sentidos materiais e simbólicos atribuídos pelos atores sociais à prática do upcycling. Como objetivos específicos procurou-se avaliar o real impacto ambiental, social e econômico na comunidade e identificar obstáculos, desafios e incentivos à prática do upcycling, como parte das políticas públicas da cidade de Fortaleza.
Para a feitura do texto, inicialmente, utilizamos de uma pesquisa bibliográfica, inventariando trabalhos sobre a temática e discussões teóricas visando compreender, de antemão, alguns conceitos listados nos objetivos específicos e estabelecendo a revisão do material. A pesquisa bibliográfica é a coleta de dados com base em materiais elaborados sobre a temática, sendo constituída, principalmente, em livros e artigos científicos, permitindo o pesquisador uma maior cobertura de fenômenos investigados diretamente[7].
Apesar de a pesquisa bibliográfica ter sua relevância para contextualizar o trabalho, a metodologia utilizada para o desenvolvimento da pesquisa foi um estudo de caso, com inserção em campo, visando a análise discursiva das falas dos agentes produtores de upcycling. A pesquisa de campo é realizada, na maioria das vezes, pessoalmente, pois enfatiza a importância do pesquisador em viver a experiência de forma direta com sua situação de estudo, constituindo um modelo investigativo clássico no campo das ciências sociais[8], pois consiste na observação direta das atividades do grupo estudado com aplicação de entrevistas/diálogos formais e/ou informais para captação das explicações expostas pelo grupo ou indivíduos[9].
A análise discursiva busca os sentidos conferidos pelas pessoas em suas ações, como os simbólicos. De fato, a análise formal ou discursiva interessa viabilizar a organização das formas simbólicas, objetivando inventariar as características estruturais, padrões e relações[10]. Entretanto, o investigador deve atentar-se que as interpretações das falas e ações dos interlocutores não estão circunscritas apenas aos significados literais das palavras, mas com sentidos diversos, permitindo a escolha de versões ou interpretações, entre as múltiplas existentes. O pesquisador lida com uma realidade polissêmica e discursiva, que é inseparável da pessoa que a conhece[11].
Portanto, a inserção em campo, não se deu durante as oficinas, mas quatro meses após a conclusão da capacitação. O diálogo ocorreu com a monitora, proponente do projeto, além de três mulheres participantes do treinamento. Para os momentos de conversa, utilizamos de um questionário semiestruturado, como marco orientador. Para a análise discursiva das falas dos atores sociais tentamos evidenciar os sentidos simbólicos, em um campo-sujeito, que é pré-interpretado, cuja constituição é formada “por sujeitos que, no curso rotineiro de suas vidas cotidianas estão constantemente preocupados em compreender a si mesmos e aos outros, e em interpretar as ações, falas e acontecimentos que se dão ao seu redor”[12].
1. Moda, sustentabilidade e upcycling
A princípio, convém destacar que a moda é uma elaboração social da modernidade, cujo início se deu na Renascença, conectada ao desenvolvimento do capitalismo e, depois, com a ascensão da burguesia, pois na Antiguidade, “não havia autonomia estética individual na escolha das roupas”[13]. A dimensão social da moda se manifesta como um sistema simbólico[14], no qual se evidenciam os signos[15] estampados pelas várias marcas[16]. Neste texto, concebemos sistema simbólico como “formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de ideias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças”[17].
A terminologia “desenvolvimento sustentável” surgiu no Relatório Nosso Futuro Comum, redigido em 1987, pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, sob a liderança de Gro Brundtland, então primeira-ministra da Noruega. O referido Relatório arrematou que um desenvolvimento somente será sustentado “se atender às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”[18]. A despeito das ambiguidades e críticas[19], o conceito de desenvolvimento sustentável, definido naquele Relatório, foi consolidado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992[20].
No cotidiano, naturalizamos a concepção de que a natureza estará sempre disponível para todos, com recursos abundantes e inesgotáveis. Entretanto, os estudos científicos têm demonstrado que a natureza não vem conseguindo se renovar em tempo hábil, alterando seu ciclo natural[21]. O homem é o principal agente de todas essas mudanças. O consumo, estimulado pelo capital, normatiza o mundo e as consequências de nossas atitudes se tornam cada vez mais desastrosas[22].
A indústria da moda, como já pontuamos, tem relevante participação na poluição do meio ambiente. Entretanto, é uma das maiores geradoras de economia no Brasil e no mundo[23]. Portanto, o mundo está posto numa encruzilhada global: como alinhar práticas ecologicamente responsáveis e desenvolvimento econômico e social?
A indústria têxtil, em todo processo produtivo, tem sido muito nociva ao meio ambiente. A elaboração de fibras naturais, como algodão, por exemplo, alguns pensam que pode não prejudicar o meio ambiente e a vida humana por ser natural. No entanto, em sua maioria é cultivada com uma intensa quantidade de agrotóxicos, segundo o Portal Modefica,[24] o glifosato, comumente usado para o cultivo de soja e algodão, aumenta 5% a taxa de mortalidade infantil, ao ano, com sua toxicidade. Aliado a tudo isso, muita água é utilizada para o beneficiamento das peças, como o tingimento, sendo a indústria da moda que utiliza 10% do abastecimento industrial total de água e está em segundo lugar, no mundo, na utilização de água do planeta[25].
Por fim, pensando na cidade de Fortaleza, como uma amostragem do problema, constata-se o descarte indevido dos resíduos, o despejo de produtos tóxicos nos mananciais[26]e a falta de políticas públicas específicas para a coleta de resíduos têxteis[27].
Não colocamos a responsabilidade apenas na indústria têxtil. A sociedade tem enorme participação na poluição do meio ambiente. A urgência pela novidade fez os indivíduos tornarem mais dependentes de um prazer fugaz de compra[28].
O industrialismo, do qual já discutimos ao longo do texto, fez a moda se beneficiar nas produções em série, com uma rotatividade produtiva intensa[29]. A indústria de fast fashion (moda rápida) é vista como uma das responsáveis aos impactos ambientais, pois não inclui os custos socioambientais, os transferindo para a sociedade e não para as empresas[30]. Essas indústrias chamam atenção ao consumidor pelo marketing da novidade e o baixo valor de seus produtos, algumas vezes, com práticas que ferem as leis trabalhistas[31]. Um dos evidentes problemas desse ramo industrial é a massificação dos produtos, a durabilidade das peças cada vez mais reduzida, tornando-as facilmente descartáveis e de longa decomposição na natureza.
Em vista das cobranças globais, o mercado da moda vem tentando uma adaptação às novas exigências dos consumidores, que buscam por produtos sustentáveis. Para tanto, muito se tem discutido sobre as possibilidades de recolhimento dos materiais têxteis em desuso, como exemplos, a reciclagem, coleta dos produtos, devolução de peças e o upcycling[32].
Moda e sustentabilidade é uma relação desejada, mas ainda bastante curto-circuitada. Entretanto, vários estudos vêm tentando fornecer soluções à questão, entre os quais destacamos, Moda e sustentabilidade: uma relação necessária[33]; Moda e sustentabilidade: design para mudança[34]; Moda ética para um futuro sustentável[35]; Moda sustentável[36] e a coletânea Moda, sustentabilidade e emergências[37]. Assim, esses e outros trabalhos facilitam, ensejam e fornecem elementos para um debate aprofundado entre moda e sustentabilidade.
Este artigo se constrói e se fundamenta a partir da técnica upcycling. Tal mecanismo tem sido, recorrentemente, usado para a elaboração de uma moda sustentável, pois, via de regra, utiliza-se a totalidade do material, cuja destinação seria o descarte[38]. Assim, a reutilização dos tecidos atenua a degradação ambiental. Desse modo, a peça produzida, a partir desses resíduos, exibe um valor agregado que, algumas vezes, poderá ser maior do que o originário. Ressaltamos também, que ao ser confeccionada, de modo quase artesanal, ganha o signo da exclusividade.
Podemos asseverar que a técnica de upcycling favorece à ressignificação do antigo, conferindo um novo sentido à peça, trazendo também uma nova valoração[39]. Imbuir-se de uma moda consciente implica em ousar num design que evoca laços emocionais, pensar no bem-estar social, além da diminuição do desperdício[40]. Assim, a técnica tem algo de revolucionário, na medida que estimula o consumidor a adesão dessa possibilidade, de moda lenta (slow fashion) e sustentável.
Esse breve debate sobre moda, sustentabilidade e upcycling objetiva circunscrever as discussões que envolvem a indústria da moda nas sociedades de consumo e os seus desafios ambientais. Portanto, tais escritos informam, provocam e sinalizam caminhos para novas investigações, como a analisada neste texto, notadamente, sobre o reaproveitamento de peças de vestuário como ação de sustentabilidade.
2. O Projeto Coletivo Fonte de Esperança: a inclusão de mulheres em vulnerabilidade social e o despertar para uma consciência socioambiental
A “Oficina Comunitária Sustentável de Upcycling” foi desenvolvida nas dependências do Projeto Coletivo Fonte de Esperança, localizado na Comunidade Jardim União II, no bairro do Passaré, em Fortaleza, Ceará, Brasil.
O referido Projeto possui inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), com natureza de associação privada e início em agosto de 2023. Na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), a entidade tem nas “associações de defesa de direitos sociais” como atividade principal. Também são listadas as seguintes ações secundárias: treinamento em desenvolvimento profissional e gerencial; serviços de organização de feiras, congressos, exposições e festas; treinamento em informática; outras atividades de recreação e lazer e organizações associativas ligadas à cultura e à arte.
O bairro do Passaré, segundo dados de 2021-2022, é o quinto mais populoso de Fortaleza, com 56.160 habitantes e apresenta baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,224. A título de comparação, o bairro Meireles, primeiro colocado, tem IDH de 0,95[41]. Esse abismo social é percebido na comunidade pela ausência de equipamentos públicos, saneamento básico, pavimentação etc.
A condição de abandono do bairro Passaré, em especial, a Comunidade Jardim União II, pelo poder público, evidenciada pelos dados acima apresentados, justifica qualquer iniciativa que vise a melhoria da qualidade de vida dos moradores. Assim, foi nesse contexto que a psicóloga Amanda Aguiar[42] apresentou a proposta “Oficina Comunitária Sustentável de Upcycling” ao 13º Edital Ceará das Artes, na categoria moda, concurso promovido pela Secretaria da Cultura do Ceará, em 2024. A proposta foi selecionada para a execução de duas turmas. Entretanto, por baixa adesão na comunidade, foi realizada apenas uma, com 10 mulheres participantes.
Diante do exposto, cabe uma ressalva, ou seja, a execução das oficinas de upcycling não se deu por uma política pública planejada por um ente federativo, porém como uma ação solitária e entusiasta da proponente, que foi selecionada em um edital de artes. Diante dessa constatação, reiteramos a avaliação de que os entes federativos têm dificuldade na implementação de políticas públicas específicas para o descarte têxtil ou mesmo para incentivo de uma moda sustentável. De todo modo, a proposta se revestiu de uma ação socioambiental inclusiva para mulheres em condições de vulnerabilidade social.
A “Oficina Comunitária Sustentável de Upcycling” ao recepcionar mulheres residentes, em um dos bairros mais pobres da cidade de Fortaleza, tem um caráter transformador, na medida em que, viabiliza novas percepções sociais, ambientais e econômicas.
Neste texto, quando alude sobre mulheres, o faz na perspectiva de gênero e do patriarcado, como categorias de análise. O conceito de gênero é polissêmico, porém há um reduzido consenso de que é “a construção social do masculino e do feminino”[43]. O relevante nessa concepção é a desconstrução, em grande parte pelos movimentos feministas, de que a diferença não se restringe apenas ao aspecto biológico, mas uma construção histórica[44]. Já o patriarcado surge como a lógica que fundamenta a dominação masculina numa relação assimétrica, visto que “não designa tão somente uma forma de família fundada no parentesco masculino e no poder paterno, mas também toda estrutura social baseada no poder do pai”[45]. Portanto, o conceito se estrutura nos seguintes eixos:
“1) pensamento de valor hierárquico e opressor, estabelecendo-se que os de cima tem mais valor enquanto os de baixo tem menos valor; 2) sustenta dualismos de valor opostos, que se excluem e se opõem, ao invés de serem considerados de forma complementar; 3) o poder é concebido como uma relação em que quem tem mais poder o exerce sobre quem tem menos poder, caracterizando uma relação de cima para baixo; 4) são criados, mantidos e perpetuados privilégios a partir desse exercício de poder para os membros dos grupos de cima; 5) sanciona-se a lógica da dominação – uma estrutura lógica de argumentação que “justifica” de forma equivocada a dominação e a subordinação do outro”.[46]
A sociedade brasileira estampa a lógica hierárquica do patriarcado, pois mesmo com alguns avanços, a desigualdade de gênero ainda é marcante, sem contar com as exclusões das minorias[47].
3. Trabalho de campo
No tópico anterior, contextualizamos o espaço comunitário em que as mulheres, interlocutoras da pesquisa, estão inseridas, destacando, brevemente, aspectos sociais, ambientais e econômicos do bairro Passaré e, de modo mais específico, o Projeto Coletivo Fonte da Esperança, com suas ações, desafios e perspectivas.
Agora, descreveremos e analisaremos, etnograficamente, o visto, vivido e ouvido durante as conversas/entrevistas semiestruturadas, de modo que se transforme em escrita. As entrevistas foram realizadas com algumas das participantes da “Oficina Comunitária Sustentável de Upcycling”. Por meio do coordenador do Projeto, nos foi apresentada uma das participantes, que facilitou o contato com outras duas mulheres, as quais chamaremos pelos pseudônimos de Rosa, Margarida e Violeta.
No dia nove de julho de dois mil e vinte e cinco, conhecemos o espaço Coletivo Fonte da Esperança. A princípio, o objetivo da visita era estabelecer o primeiro contato em campo com os agentes que atuam na Associação, a fim de compreender melhor os projetos desenvolvidos e conversar com o Coordenador sobre detalhes do desenvolvimento da oficina de upcycling. Ao chegarmos, nos apresentamos ao coordenador do espaço, que antecipadamente já havia recebido um ofício da Universidade Federal do Ceará. Ele, prontamente, convidou Rosa, uma das participantes da oficina, para compartilhar sua experiência no curso.
A capacitação teve duração aproximada de um mês, com encerramento das atividades em março de 2025. A turma foi iniciada com cerca de 14 participantes, das 20 vagas ofertadas. Todas as mulheres capacitadas pertencem à comunidade do Passaré. Nos foi relatada a evasão de 4 mulheres. Rosa avaliou que a oficina foi ministrada com uma metodologia acessível e de fácil compreensão, iniciando com uma etapa teórica sobre sustentabilidade e a importância do reaproveitamento de resíduos, seguida da parte prática para criação dos produtos.
O perfil das participantes é, majoritariamente, composto por mulheres donas de casa, algumas possuem máquinas de costura, o que facilitou o desenvolvimento das peças durante a capacitação. Um dado interessante apontado pela interlocutora foi que a comunidade já tem familiaridade com o consumo de brechós, pois há vários na região, além da prática de bazares, cuja realização ocorre há mais de duas décadas.
Rosa relatou que, no início, existia um certo preconceito da comunidade em relação ao consumo de roupas usadas, mas que, com o tempo e muito diálogo, essa percepção foi sendo modificada. Esse aspecto é especialmente relevante, pois revela um trabalho de conscientização ambiental e econômica, mesmo que de maneira involuntária.
As roupas utilizadas na oficina, em grande parte, foram levadas pelas próprias participantes, itens pessoais, que estavam em desuso. Além disso, algumas puderam comercializar os produtos confeccionados (Figura 1) durante o curso em bazares e brechós locais. Com o aprendizado da técnica, elas passaram a transformar peças que estavam paradas em seus brechós, dando nova utilidade e possibilitando maior rotatividade.
Rosa possui um brechó com as irmãs e contou que, após o curso, passou a ver as peças do seu negócio com um novo olhar. Atualmente, elas estão trabalhando na separação de calças jeans para transformá-las em bolsas. Rosa, também, destaca a importância da oficina, tanto pela realização pessoal, quanto pelo melhor aproveitamento do tempo aliado a um retorno financeiro, além de poder administrar seu próprio negócio enquanto contribui para o meio ambiente.
Figura 1 – Peças produzidas nas oficinas
Fonte: Coletivo da Esperança
Outro ponto que reputamos importante destacar foi o impacto da oficina no empoderamento e autoestima das mulheres participantes. O empoderamento está presente em diversas áreas e sua estratégia consiste principalmente em promover grupos menos favorecidos para alcançar o desenvolvimento econômico e social, reduzindo as desigualdades[48]. Tal percepção feminina, também, possibilita o enfrentamento das assimetrias patriarcais, visto que:
“O empoderamento de mulheres é o processo da conquista da autonomia, da autodeterminação. E trata-se, para nós, ao mesmo tempo, de um instrumento/meio e um fim em si próprio. O empoderamento das mulheres implica, para nós, na libertação das mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal. Para as feministas latino-americanas, em especial, o objetivo maior do empoderamento das mulheres é questionar, desestabilizar e, por fim, acabar com a ordem patriarcal que sustenta a opressão de gênero”.[49]
Além da percepção de empoderamento, a atividade trouxe melhorias na qualidade de vida e fortaleceu vínculos comunitários e familiares. Rosa relatou que, ao levar as atividades para casa, despertou o interesse da neta, que passou a ajudá-la nas criações. Interações, como essa, promovem a conscientização dentro da comunidade, criando teias sociais que favorecem a transmissão de saberes entre gerações, como já acontece com as técnicas artesanais tradicionais. Poderíamos assinalar, que tais práticas de transmissão de saberes geracionais mantém viva uma memória coletiva[50].
Ao final do curso, as peças produzidas foram apresentadas em um desfile promovido dentro do Coletivo da Esperança. O evento contou com a participação de oito modelos. Houve a seleção de 16 peças, pelas participantes, as quais foram produzidas durante as oficinas. O desfile foi realizado no próprio espaço comunitário, contando com 35 espectadores da própria comunidade.
Segundo Rosa, foram produzidas, ao longo da capacitação, em torno de 30 peças, das quais 10 foram vendidas, o que representou uma motivação extra para continuar com a prática. Existe, inclusive, a ideia de montar uma lojinha no próprio espaço comunitário, a fim de facilitar o acesso e as vendas. Indagada sobre as dificuldades enfrentadas na implementação da técnica, ela afirmou que não encontrou grandes obstáculos. No entanto, Rosa e o coordenador apontaram que com maior divulgação e comunicação ajudariam a atrair mais participantes e ampliar o alcance da iniciativa.
Como já destacado, o Coletivo da Esperança não conta com incentivos públicos voltados para iniciativas no campo do mercado criativo. No momento da visita, estava sendo realizado um curso de empreendedorismo que, consoante Rosa, contribuirá bastante para a autonomia financeira das mulheres envolvidas, auxiliando na estruturação de seus próprios negócios. Ela ainda pontuou que, após a oficina de upcycling, não houve outras iniciativas relacionadas à moda ou vestuário. No entanto, considerando o perfil do público da região, atividades nesse nicho poderiam ser muito proveitosas e bem recebidas pela comunidade.
A entrevistada demonstrou grande interesse e envolvimento com práticas sustentáveis e ressaltou o quanto a oficina foi transformadora para sua vida. Após o curso, ela adquiriu sua própria máquina de costura, visto que antes dependia das irmãs para utilizar o equipamento e se sente mais próxima de concretizar o sonho de abrir seu próprio negócio. Ela também compartilha seus conhecimentos em um projeto social com idosos, expandindo ainda mais o impacto positivo da experiência vivenciada.
Rosa, ao relatar sobre sua experiência na oficina, demonstrou plena conexão com a realidade atual, em especial, os desafios ambientais. Apesar dessa fala ter sido importante, principalmente, para responder alguns questionamentos desta pesquisa, o que resultou como mais relevante foram as mudanças em sua vida pessoal e profissional. Ao assinalar que “pude realizar meu sonho”, as camadas por trás desse sentimento circunscrevem-se, principalmente, na oportunidade de adquirir mais conhecimento dentro de uma área, em que de uma forma ainda incipiente, ela já atuava. Há que se destacar também, o fato de se tornar um mecanismo de independência, aliando o prazer no fazer com a possibilidade de retorno financeiro. Rosa, por mais de uma vez, ressaltou, o quanto a iniciativa ajudou na autoestima e na qualidade de vida, abrindo as portas para sair da rotina diária de cuidar dos filhos, fazer as atividades domésticas e ainda trabalhar. Isso implica em mudar o foco, para cuidar de si, para praticar a criatividade e mostrar do que é capaz.
A realidade de muitas dessas mulheres é em função do lar, algumas vivem da própria costura, sendo um trabalho automático, de ajustes e produções. Assim, pouco sobra tempo para explorar aquilo que realmente se quer criar. Trabalhos manuais e criativos ajudam a mente, a autoconfiança, a memória e contribuem para o bem-estar individual. Quando atrelado a uma atividade coletiva, o grupo se fortifica, e o que era individual passa a ser cooperativo, melhorando a sociabilidade e fortalecendo a comunidade.
O sonho de Rosa, em comprar sua máquina de costura, somente foi realizado após o curso. De alguma maneira, essa ação não se estabelece única e exclusivamente no fato de adquirir o maquinário, mas na capacidade e na visão de agora sim, existe a possibilidade da concretização de um sonho maior, de trabalhar para si em suas próprias criações/transformações/customizações, ou melhor, de ter seu próprio negócio. Aqui, talvez tenhamos, a repressão de seus desejos devido a dedicação de cuidar dos filhos e dos outros e a batalha diária para ganhar a vida. Rosa mostrou ser uma mulher bastante esclarecida no campo ambiental e social, pois trabalha com ações sociais, principalmente, com idosos, com os quais tem dedicado parte de sua vida. Agora, porém, com o despertar das oficinas de upcycling, ela pode, juntamente, com o brechó de suas irmãs, desenvolver seu próprio negócio e olhar para si, reforçando sua afirmação “isso melhora a nossa qualidade de vida”.
Já em nossa segunda visita, pudemos conversar um pouco mais com duas interlocutoras que, coincidentemente, são irmãs de Rosa. A conversa foi marcada para acontecer no dia vinte e nove de julho de dois mil e vinte e cinco. Nessa oportunidade, os diálogos ocorreram na residência de uma delas. As entrevistadas, aqui, são nominadas como Violeta e Margarida. Violeta mais calada e concentrada em seus afazeres, porém sempre atenta aos nossos questionamentos e Margarida mais expansiva e aberta para contar sua experiência.
Devido ao espaço onde ocorreu a conversa ter sido em um ambiente mais íntimo para ambas, isso tornou o diálogo mais confortável. Contudo, foi necessário limitar os questionamentos devido à disponibilidade de tempo das interlocutoras. Violeta e Margarida têm idades de 63 e 64 anos, respectivamente. Elas sempre estiveram envolvidas com o mundo da moda/costura. Margarida possui mais familiaridade no trabalho de coser, enquanto a violeta é mais adaptada com a arte de crochetar. O ponto é que ambas estão acostumadas com trabalhos manuais. Margarida recorda, emocionada, sobre a história de sua mãe e de como começou a costura no Interior do Ceará, sem nada, apenas linha e agulha. Ela ressalta, a história da blusa de cambraia de linho, que sua mãe costurou para um moço da região, que iria se casar. Ela relata, orgulhosa, que sua mãe se esmerou para entregar com maior qualidade e carinho possível e que isso a inspirou para tudo que faz no seu trabalho. Aqui é oportuno destacar a evocação de Margarida, em que vincula a arte de costurar, com as memórias da mãe, pois lembrança é:
“Em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou bem alterada […] podemos então chamar de lembranças muitas representações que repousam, pelo menos em parte, em depoimentos e racionalização. Então, a parte social ou, se o quisermos, do histórico em nossa memória do passado é muito maior do que pensávamos. Porque vivemos, desde a infância, em contato com adultos, adquirindo muitos meios de encontrar e precisar muitas lembranças que, sem estes, teríamos em sua totalidade ou em parte, esquecido rapidamente”.[51]
A experiência das duas mulheres com a oficina, além do aprendizado na nova técnica, também foi um momento de rememoração. Tanto Violeta como Margarida se queixaram do pouco tempo disponível para aprimorar e aperfeiçoar os seus trabalhos. Elas admitem, em tom jocoso, que nunca tinham ouvido falar na técnica de upcycling, mas que sempre, de forma empírica, já praticavam. Elas destacam o quanto foi bom viver essa experiência. Primeiro, porque reforça a ideia de se diferenciar e de reaproveitar aquilo que elas possuíam em casa, atrelado com técnicas que elas tinham certo domínio, como crochetar, bordar e costurar. E que esses conhecimentos prévios, facilitaram o processo de execução no curso.
Violeta e Margarida possuem um bazar/brechó faz 15 anos e que iniciativas, como da oficina, são importantes para facilitar a circulação das peças, pois alegam que “se tem um defeito, um furo, a gente pode cobrir com uma aplicação e assim tem uma peça diferente e que pode ser vendida”. Margarida, por mais de uma vez, reforçou a ideia de como isso era uma boa alternativa para gerar renda, não apenas para elas, mas para a comunidade em geral. No entanto, a queixa maior foi a falta de adesão da comunidade para participar do curso.
Inicialmente, a turma começou bem, mas a evasão foi significativa. Margarida conta que seu interesse principal para participar da oficina, e aqui queremos destacar como um aspecto importante de análise, foi o fato de poder sair de casa. Ela afirma “eu vivo em uma prisão, passo o dia trancada dentro de casa”, sua motivação era socializar, era ter contato com outras pessoas fora do seu ciclo familiar. Era, de fato, viver em comunidade e atrelado a isso, aprender coisas novas. O fato de sair de casa, ver gente e estar ali com outras pessoas criando, “é um processo desestressante”, assinalou Violeta. Sair da rotina do cuidado dos netos, do trabalho mecânico e automatizado da costura, é um processo de autocuidado, de finalmente olhar para si depois de tanto se dedicar para o outro. Há que se destacar que esse “sair de casa” para encontrar “outras mulheres” subjaz um grito de libertação frente aos papéis que a sociedade patriarcal confere às mulheres.
Margarida conta, com um tom inconformado, que muitas mulheres da comunidade deixaram essa oportunidade passar sabendo o quanto isso é bom para a “cabeça”. Porém, estão muito acomodadas e não percebem como isso poderia fazer bem para elas, além de ser uma forma de renda para todas, bem como de unir a socialização, com atividades que exercitam a criatividade e melhoram a autoestima. Margarida valoriza as relações comunitárias de se encontrar com outras mulheres, pois:
“A reflexão sobre a sua realidade de vida torna-se instrumento para compreender as forças que causam essa mesma realidade. Ao tomar consciência dessas causas e das alternativas possíveis para as superar, as mulheres tornam-se aptas a determinar as transformações que desejam operar na sua vida e na vida da comunidade. A troca de experiências alarga-se a outros grupos, com que as mulheres estabelecem relações. Assim, vão aprofundando a compreensão que têm de si e da sua relação com os outros e definindo estratégias de intervenção”[52].
Margarida e Violeta, além da dimensão social da experiência, destacam que há poucos cursos, na comunidade, voltados para o campo da moda, como foi a oficina de upcycling. Sendo que se ofertasse mais cursos, elas fariam, dando destaque inclusive para temáticas como precificação, pois alegam que muitas pessoas não valorizam os trabalhos manuais que demandam tempo e dedicação.
Apesar de afirmar que gosta de aprender mais, a intenção principal é movida pelo ato de fazer qualquer coisa, que não seja a rotina cansativa. É poder sair do óbvio e ao menos, por pouco tempo, se desligar das obrigações e tarefas diárias, que lhes são impostas pela dominação masculina[53] fundamentada na lógica assimétrica do patriarcado.
4. Análise de dados
O que podemos perceber com esses breves diálogos é que a questão da conscientização social é muito mais forte nas falas das mulheres do que a própria questão ambiental, objeto de discussão na problemática abordada neste trabalho. É possível perceber a preocupação com o meio ambiente, mas de maneira secundária. Isso se explica, em parte, pela naturalização, na vida da comunidade, da ausência de serviços públicos. Ora se o esgoto corre, por anos, a céu aberto, se há alagamentos corriqueiros, se o lixo é jogado em terrenos baldios, a temática ambiental, como discurso, passa ao largo, muito embora seja reclamado pelas consequências, em especial, as doenças.
Por várias vezes, as palavras “reaproveitar” e “transformar” foram mencionadas por nossas interlocutoras e apesar de isso contribuir para interpretação, não é o que de fato mais importa para elas. Algo curioso, que nos chamou atenção, foi o relato, de que algumas peças, que elas tinham desenvolvido a partir de banners do trabalho social de Rosa. Elas precisavam pensar em soluções para o descarte desse “lixo”, assim, surgiu a ideia de fazer capa para computador, necessaires e bolsas com o material que seria descartado. Tudo isso ocorreu bem antes da oficina de upcycling.
Em termos teóricos, essa ação retrata exatamente a ideia central do upcycling como técnica, ou seja, transformar o que seria lixo em algo novo e com maior valor agregado. Elas narraram que venderam todas as peças. Rosa, pelo seu envolvimento em projetos sociais, acabou tendo uma percepção mais aguçada da importância desse feito ao meio ambiente. Já as outras acharam interessante, com orgulho do que fizeram, mas não aparentam ter a mesma dimensão da importância desse trabalho.
Por outro lado, destacamos aqui uma unanimidade nas falas das entrevistadas: a oficina permitiu muito além de conhecimento e renda, mas o principal, que é a companhia e o movimento de empoderar mulheres e melhorar a autoestima de cada uma. Nossa sociedade é estruturada na lógica patriarcal, em que o homem é posto no polo dual de dominância, assumindo a condição de provedor ativo e a mulher colocada para os afazeres de casa, em uma posição de passividade, de cuidar do outro, do marido, dos filhos, netos, da casa e, muitas as vezes, trabalhar fora. O tempo para si não existe.
A subordinação feminina é compreendida no processo de socialização em proximidade com a mãe[54]. Enquanto os homens rompem com essa figura materna para construção da sua identidade, as mulheres permanecem nessa contínua relação como uma extensão da própria mãe, impedindo que a mulher se firme como sujeito autônomo pleno. Isso consequentemente herda essa imagem materna de cuidado e abdicação de si para o outro, com o fundamento na lógica patriarcal[55].
O discurso, de viver trancada dentro de casa, revela anos de dedicação para os outros, para a casa e para o trabalho. O dividir momentos com outras mulheres para criar, nada mais é do que um romper de temporalidade doméstica, do cuidado de si, de respeitar a mente e ter liberdade para criar e ter voz para falar e fazer o que realmente deseja. Mesmo, subjacentemente, é um grito de liberdade.
Conclusões
Em arremate ao texto, podemos asseverar que as ações propostas pela oficina de upcycling foram benéficas para a comunidade, ajudando, primordialmente, no empoderamento e bem-estar das mulheres residentes na Comunidade Jardim União II/Passaré. Apesar de ser uma pequena amostragem para a pesquisa, é possível perceber como ações de incentivos, como esta, são capazes de melhorar e movimentar o empreendedorismo na comunidade, bem como elevar a qualidade de vida de cada participante envolvida no projeto.
Com isso, é possível perceber que atividades, como a prática da técnica de upcycling, no espaço comunitário, são positivas social e ambientalmente, visto que o uso desse método auxilia na movimentação de peças estagnadas, principalmente, para aqueles que têm como negócios brechós e bazares. Assim, movimentam os artigos que estavam “encalhados”, dando sequência ao novo “ciclo de vida” do produto, além de ser um exercício criativo. Sem contar que melhora a autoestima, saúde mental, atrelados a ganhos financeiros e solucionando uma pequena parcela do problema do descarte têxtil, são ações que já trazem impactos positivos para a região.
Por fim, destacamos que as oficinas de upcycling, além do incipiente despertar ambiental, ensejou a aproximação de mulheres com histórias de vida semelhantes. Essa vivência, de troca de experiências, memórias e vulnerabilidades sociais, produz teias comunitárias que solidificam às relações entre elas.
Ademais, cabe reconhecer as limitações desta pesquisa, principalmente quanto à abrangência de análise e diante da pequena amostragem de participantes no projeto. Além disso, vale ressaltar a necessidade de avaliação de políticas públicas para verificar se as propostas alcançam, de fato, seus objetivos de inclusão social e ambiental.
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Las opiniones, análisis y conclusiones del autor son de su responsabilidad y no necesariamente reflejan el pensamiento de la Revista Inclusiones. | |
[1] Organização das Nações Unidas – ONU/Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum (Rio de Janeiro: FGV, 1991).
[2] Elena Salcedo. Moda ética para um futuro sustentável (São Paulo: Editora GG, 2014).
[3] Gatto, Gabriel. “Moda sustentável: entenda como deve ser feito o descarte correto de roupas e tecidos”. Planta – Portal Terra. Outubro, (2023).
[4] Daniela Calanca. História social da moda (São Paulo: Editora SENAC, 2011).
[5] Brasil. Lei Complementar nº 195/2022, de 8 de julho de 2022. Dispõe sobre o apoio financeiro da União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para garantir ações emergenciais direcionadas ao setor industrial. DOU. Brasília, DF (2022).
[6] Lucietti, Tamires Joaquim et al. “Importância do upcycling no desenvolvimento da moda: estudo de caso da marca recollection lab”. Revista INTERthesis, vol. Florianópolis, vol. 15, nº 2, mai-ago, (2018): 143-159.
[7] Antônio Carlos Gil. Como elaborar projetos de pesquisa (São Paulo: Atlas, 2002).
[8] Gil, Como elaborar projetos de pesquisa, 78.
[9] Oracy Nogueira. Pesquisa Social: introdução às suas técnicas (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986).
[10] John B. Thompson. Ideologia e cultura moderna: Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa (Petrópolis: Vozes, 1995).
[11] Odette de Godoy Pinheiro. “Entrevista: uma prática discursiva”. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas (São Paulo: Cortez,1999).
[12] John B. Thompson. Ideologia e cultura moderna, 358.
[13] Lars Svendsen. Moda: uma filosofia (Rio de Janeiro: Zahar, 2010).
[14] Roland Barthes. Sistema de moda (São Paulo: Martins Fontes, 2009).
[15] “Signo é a união de significante e significado, de vestuário e mundo, de vestuário e moda” Barthes, Sistema de moda, 388.
[16] Frédéric Godart. Sociologia da Moda. (São Paulo: SENAC, 2010), 113.
[17] Clifford Geertz. A Interpretação das Culturas (Rio de Janeiro: Livro Técnicos e Científicos, 1989), 105.
[18] ONU. Nosso futuro comum, 46.
[19] Ignacy Sachs. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. (Rio de Janeiro: Garamond, 2009).
[20] André Aranha Corrêa Lago. Conferências de Desenvolvimento Sustentável (Brasília: FUNAG, 2013).
[21] Elena Salcedo. Moda ética para um futuro sustentável.
[22] Lars Svendsen. Moda: uma filosofia.
[23] Enrico Cietta. A economia da moda (São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017).
[24] Juliana Aguilera. Gliofosato de A a Z: Agrotóxico mais utilizado na produção de algodão é associado a mais de 26 doenças (Modefica,2021).https://www.modefica.com.br/glifosato-agrotoxico-algodao-26-doencas/.
[25] Febbratex Group. A indústria da moda é a que mais gasta água a nível mundial, depois da agricultura (São Paulo: Tecnotêxtil Brasil, 2021). https://tecnotextilbrasil.com.br/industria-da-moda-e-a-que-mais-gasta-agua-a-nivel-mundial-depois-da-agricultura/
[26] Elena Salcedo. Moda ética para um futuro sustentável.
[27] Nyvya Rodrigues Bezerra Freitas; Emanuelle Kelly RibeiroSilva. “Descobrindo os caminhos da rota do lixo: uma análise sobre a problemática do descarte de resíduos têxteis no Município de Fortaleza-CE e Região Metropolitana”. Anais do 18º Colóquio de Moda. ABEPEM, 2023.
[28] Gilles Lipovetsky. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas (São Paulo: Companhia das Letras, 1997).
[29] Frédéric Godart. Sociologia da Moda.
[30] Enrico Cietta. A economia da moda.
[31] Elena Salcedo. Moda ética para um futuro sustentável.
[32] Elena Salcedo. Moda ética para um futuro sustentável.
[33] Lilyan Berlim. Moda e sustentabilidade: uma reflexão necessária (São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014).
[34] Kate Fletcher; Lynda Grose. Moda & sustentabilidade: design para mudança (São Paulo: SENAC, 2011).
[35] Elena Salcedo. Moda ética para um futuro sustentável.
[36] Alison Gwilt. Moda sustentável: um guia prático (São Paulo: Gustavo Gil, 2014).
[37] Ana Mery Sehbe de Carli; Bernadete Lenita Susin Venzon, (Orgs). Moda, sustentabilidade e emergências (Caxias do Sul: EDUCS, 2012).
[38] Ecycle. Upcycling: qual o significado e como aderir à moda, (S.d).
[39] Morelli, Graziela; Ender, Jacqueline. “Upcycling: um novo caminho para a moda sustentável”. GAMPI Plura, 6º, 2017, Joinville, Anais Eletrônicos. Joinville: Univille, (2017): 1-12.
[40] Elena Salcedo. Moda ética para um futuro sustentável.
[41] Fortaleza. “Desenvolvimento humano, por bairro, em Fortaleza”. Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (2018).
[42] O nome está sendo mencionado, pois foi publicado na lista de selecionados.
[43] Heleieth Saffioti. Gênero, patriarcado e violência (São Paulo, Expressão Popular/Fundação Perseu Abramo, 2015), 47.
[44] Lourdes Maria Bandeira. “Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação”. Sociedade e Estado, 29, 2 (2014), 449-469.
[45] Silvia Tubert. Mulheres sem sombra: maternidade e novas tecnologias reprodutivas (Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Ventos, 1996), 230.
[46] Tânia Aparecida Kuhnen. “Conservação da natureza e manutenção patriarcado: apontamentos ecofeministas”. Mulheres, desigualdade e meio ambiente (Caxias do Sul: Educs, 2017), 76.
[47] Letícia Ésther de Andrade. “A consolidação do patriarcado no Brasil: a origem das desigualdades entre homens e mulheres”. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 06, Ed. 11, Vol. 07, pp. 25-39, novembro (2021).
[48] Gildete da Rosa. “Empoderamento feminino e desenvolvimento: uma análise para o Brasil” (Monografia de Graduação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018).
[49] Cecília Sardenberg. Conceituando “Emporedamento” na Perspectiva Feminista. (Salvador: NEIM/UFBA, 2006), 2.
[50] Maurice Halbwachs. A memória coletiva (São Paulo: Vértice, 1990).
[51] Maurice Halbwachs. A memória coletiva, 71.
[52] Bertina Sousa Gomes. “Mulheres em processo de socialização: algumas questões acerca das suas representações”. Análise Social. Vol.22, nº 92-93, (1986): 823-824.
[53] Pierre Bourdieu. A dominação masculina (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003).
[54] Rita Laura Segato. “Os percursos do gênero na antropologia e para além dela”. Sociedade e Estado. V. 12, nº 2, (1997).
[55] Silvia Tubert. Mulheres sem sombra.